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Romance e pressa

Como se começa um romance? O que é um romance?

Buenas, parece que esta palavra e seu sentido estão se perdendo, entre as poeiras do tempo e na velocidade do mundo. Qualquer coisa que demore um tempo está fadada a um arquivamento temporário. Embora as pessoas continuem se apaixonando,  o que lhes é sugerido é que não degustem com calma o amor, uma vez que ele ainda não se encontra ali na prateleira do supermercado a proporcionar-lhe prazeres incríveis, que as outras e demais brands lhe proporcionam.

A mídia tem feito o possível para tornar banal o romance, o amor; parece, inclusive, que não há histórias a contar, a não ser as que apelam para o senso comum. O cinema, a literatura, a música, as artes de modo geral, mesmo as mais comerciais se fartam de cantar o que vai pelas almas, pelos sentidos. Mesmo que não gostemos desse ou daquele movimento musical e, na verdade, abominemos tais ou quais ritmos ou tendências, as artes normalmente buscam o que de humano resiste. A mídia, contudo, faz uma tentativa enlouquecida de transformar e de associar brands aos nossos estados mentais. Filha dileta de um capitalismo alienante e pelo mesmo sustentado, a tendência buscada é a de transformar em mercadoria valores que estão, por essencia, fora do jogo direto da mercancia.

Para tanto, é interessante que tais conexões perdurem. Por outro lado, quanto mais passivo for o espectador, quanto menos for capaz de interpretar o que lê, o que ouve e o que vê, maior será a tendência ao escapismo. E escapistas ou consomem ou são consumidores frustrados.

De qualquer modo, há um tensionamento entre a vida real e o formulismo mercantil ao qual somos expostos vinte e quatro horas por dia. A propaganda e a publicidade não nos dão chance de olharmos a lo largo.  De todo modo, há milhões se apaixonando no exato momento em que escrevo, o que significa que a indústria cede lugar ao artesanal, que os olhares nos olhos substituem a luxúria simples e pura e que pessoas pensam em projetos de vida, o que é diferente dos projetos que visam lucros e dividendos.

Amores requerem tempos, mesmo para que fiquem silentes, simplesmente ouvindo o que normalmente não se escuta, admirando o que normalmente não se vê, conversando desinteressadamente como não se fala em convenções e em congressos setoriais. Se a paixão virar amor, prepare-se, você não ouvirá Led Zeppelin ou o Sepultuera, mas Cole Porter e Piaff. E ouvir Cole Porter ou Piaff com pressa é, no mínimo, um sacrilégio.

Nasci em 1954. Hoje, 2014, tenho 60

NINGUÉM faz sessenta sem ter uma história. Eu tenho várias, muitas que me fizeram emocionar, que me paralisaram, que me deixaram eufórico, que me fizeram gozar muito (e não no sentido primeiro que se pense, embora não possa reclamar!) da vida. Tenho lembranças maravilhosas, tenho flashes que levarei comigo e daqui para quando viver. Mas algo sempre me acompanhou, independentemente da minha idade, da minha formação, enfim, de tudo, a música. Como tenho sessenta, ouvi muita música. Bossa nova e músicas nostálgicas, e talvez daí me venho a propensão a ter a nítida impressão de ter vivido coisas que eu não vivi, em épocas que não havia nascido, ou não tinha idade para aproveitar. Há, pois, comigo, experiências vividas e não vividas. É estranho? Sim e não. Ouvi Nat King Cole, Carl Porter, descobri sons novos, circulei pelo erudito, aprendi muito, mas em todo o caso, nada seria como é se não fosse a música.

Minha melancolia resullta de uma alma inquieta, uma alma que muitas vezes se confrange e chora desesperadamente, sem que ninguém note, por que o rosto esconde o que estou sentindo. Não cultivo subterfúgios, e o mais complicado é as pessoas que me conhecem superficialmente me entenderem. Como sou ótimo em relações pessoais, elas não entendem que eu posso me aborrecer com determinadas atitudes.

No entanto, há amizades que conservo muito, porque respeito a opinião dos outros, mas não admito que desrespeitem as minhas. Não gosto de molecagem, de pessoas que dizem o que querem porque estão bebadas ou porque passam por uma crise. Eu também tenho minhas crises, e sei valorizar minhas amizades. Meus amigos são pessoas muito legais, e fazem parte, cada uma delas, das minhas trilhas sonoras.  Tenho para cada uma uma música que a defina. Mas gosto mesmo é de amizades Stardust. HILTON BESNOS.

O mundo e suas leituras

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Hilton Besnos

É imprescindível entender o mundo no qual estamos inseridos, não só porque poderemos ser cidadãos ativos e participantes da sociedade, mas porque poderemos entender que a alienação muitas vezes provem da manipulação de comportamentos e argumentações artificialmente naturalizadas. Pois bem, e como entender a um mundo que se pauta por confrontos inúteis para a imensa maioria, mas lucrativos para as minorias de sempre, em dogmas que mais imobilizam que constroem, em um grau de complexidade e de informações que a todos atordoa?

Como buscar olhar a paisagem se, na maior parte do tempo enxergamos a realidade no nível da rua? Como elevarmos nosso espírito se tudo nos leva para a mercancia e para o consumo delirantemente fugaz? Como termos consciência dos movimentos do mundo se cada vez mais ele nos parece um bólido, a engolir incessantemente tempos e distâncias?

As respostas não são, muitas vezes diretas e muito menos claras. Não há tempo para as hipóteses, somente para os fatos e suas consequências…

No entanto, podemos nos valer de modo positivo dessas mesmas ferramentas que estão à nossa disposição mas que, teimosamente, insistimos em não nos apropriar: do passado, as questões éticas, os valores, as tradições, os sinais ainda recentes de um mundo de produtores, no dizer de Bauman. De um passado menos afastado, dos novos padrões tecnológicos obtidos a partir da informática, da telefonia, dos avanços da medicina, da informação, do plano que nos cerca e que nos induz a sermos o que somos.

Educação.

Há um campo destinado para a educação, uma educação que pode ser formal, informal, comunitária, que pode enfocar as ciências, as linguagens, as músicas, as vanguardas culturais. Aprendemos porque somos seres vivos, diz Maturana. É bem verdade que nem sempre aprendemos o que interessa à sociedade, pelo menos retoricamente: o crime é um derivativo da aprendizagem, aprendemos a corromper e sermos corruptos, aprendemos inclusive a ignomínia, a ignorância, os lamentos sem sentido, as fraudes, a miséria, a prostituição, a mercancia da miséria, da morte, da estupidez e da mais pura estupidez.

Contudo, podemos, igualmente, aprender a ser mais, no sentido intensamente humano do Mestre Paulo Freire.

A educação nos traz vantagens que, muitas vezes não estão expressas no PIB, na economia, no aumento dos índices de consumo. A educação nos leva sempre adiante, em busca de. Nem sempre, infelizmente, ela pode garantir empregabilidade, estabilidade, segurança financeira, mas sempre, desde que voltada para a humanidade, nos tornará pessoas melhores, mais solidárias, mais congruentes com o mundo, mais responsáveis com a natureza e com as relações com os outros. Aprendemos a ser mais cidadãos em relação ao contexto social em que nos encontramos. Juntemos educação e formação ética e moral e teremos maior solidariedade no mundo. Estudar abre portas.

Leitura crítica do mundo.

É necessário que pensemos na leitura crítica de situações que são potencialmente falsas, artificiais, artificiosas, mas vendidas como naturais. Expandindo o conceito, a leitura crítico-social deriva da necessidade de desenvolver a capacidade de não sermos passivos quando algo nos é comunicado, nos é posto, seja pela mídia, seja pelos fatos do mundo. É buscar o que se esconde sobre a aparência, o que perpassa como um argumento não-dito, é a decodificação do que é essencial, do que a manipulação busca esconder, camuflar, tornar parâmetro comportamental ou orientador de tendências culturais.

Certa vez Mestre Freire ensinou que não é possível educarmos sem termos uma leitura social da turma a qual pretendemos ensinar. Tinha e tem razão. Leituras, no mundo atual, desprenderam-se, conceitualmente, da leitura textual. Há leituras imagéticas, há leituras sonográficas, há leituras simbólicas, há leituras semióticas, enfim, há leituras complexas.

Nem todos tem acesso a tais possibilidades, mas é o senso crítico apurado que nos fará indagar das razões pelas quais somos informados disso ou daquilo e, por outro lado, não somos informados de outras circunstâncias. A própria possibilidade real de efetivarmos ou não algo depende da nossa leitura criteriosa de nossos objetivos. Como já disse Frei Betto e Domenico di Masi: ” se duas pessoas, uma culta e outra ignorante assistem ao mesmo filme, elas, efetivamente não assistiram ao mesmo filme.”

O limitador da criticidade radica em nós mesmos, mas a capacidade de melhorarmos isso é latente.

Requer trabalho, estudo, observação, mas nos diferencia e, a partir daí, pode fazer com que tenhamos uma base mais ética e mais justa para influirmos no contexto social.

Ouvir.

É necessária a escuta, que nos faz aprender com o outro. Precisamos resgatar a arte da escuta e do silêncio. Ouvir nos coloca na situação dúplice exigida pelo discurso. Em um mundo no qual o açodamento, o fazer parece ser a regra, muitas vezes esquecemos de contrapor a fala ao silêncio, e assim nos pomos deseducada e deselegantemente a açular a paciência alheia.

Não nos permitimos ser interrompidos, mas fazemos isso incontáveis vezes, pela simples compulsão de uma fala não raro pautada pela verborragia e pela redundância. É importante que os outros nos ouçam, mas não é importante que ouçamos esses mesmos. A escuta nos permite a atenção, o mantenimento no foco no que está sendo proposto. As palavras são, muitas vezes, o espelho mais previsível das nossas incongruências, das nossas sempre celebradas opiniões. Quando os antigos diziam que falar é prata e calar é ouro, o faziam com experiência e sabedoria. Preferimos, contudo, relegar tal ensinamento ao limbo.

Poupemos a nós mesmos de nossas idiossincrasias, mas, em especial, não descartemos o fato de que terceiros leem criticamente o que dizemos. Tenhamos, pois, cuidado com a escuta. Ela é básica para que, em um mundo complexo, possamos fazer esforços honestos para entendê-lo.

Matutar.

Não matutamos. Matutar é coisa de matuto, e há toda uma carga negativa associada à palavra. Matutos são seres que não se atualizaram, viventes de uma realidade que se esgotou ao longo do tempo. Com base nesses argumentos sem sentido desaprendemos o prazer de pensar com atenção, com tempo suficiente para que possamos não apenas ver apenas uma perspectiva mas que nos habilitemos a enxergar um pouco acima do nível da rua.

Necessitamos pensar as intencionalidades dos discursos, mas para isso é preciso tempo. A melhor alternativa para que conheçamos tais intencionalidades é a de que possamos deixar o tempo e as idéias fluírem para irmos, cautelosamente pensando sobre os assuntos postos. Matutar, mais do que nunca, é preciso, até porque é uma das mais caras possibilidades que possuímos de entender não apenas o imediato (recurso primeiro e último de nossa época) mas também o mediato, o que não está escrito, o que o discurso esconde. Matutar, pois, exige treinamento, para ouvir, para falar, para apreender não apenas o revelado, mas o que é revelado através do exercício da temperança.

Navegar no tempo.

Vivemos em uma época na qual a ausência de tempo para pensarmos absolutamente não é casual. Mais um pouco e pensar nos levará ao mais completo desinteresse e, por falta de hábito, mesmo à exaustão. Não nos permitimos dar tempo para a maturação; antes, parece-nos que tudo tem de ser decidido já, agora, imediatamente.

Não resistimos à pressão de resolvermos qualquer assunto, opinarmos apaixonadamente sobre todos os temas, independentemente de natureza e complexidade que aquele possa ter. O sentido de urgência havido cotidianamente nos coloca na posição de reféns do estresse, do imediatismo. Passamos o tempo com a sensação de que somos atropelados, de que há uma força incomensurável que nos prensa como a pastéis. Afinal, quantas das respostas que buscamos freneticamente são efetivamente necessárias com o grau de pressão com o qual nos são apresentadas cotidianamente? E aqui, há um parâmetro, que pode ajudar, eventualmente.

Pergunte-se: em face de uma situação, o que pode acontecer de melhor? E de pior? Assim, perdemos a noção de navegarmos no tempo, de usá-lo a nosso favor. Navegamos em favor dos outros, dos seus fatos, das suas procuras, das suas necessidades. Quando aprenderemos que um vinho necessita, lá na ponta, de uma videira, de um processo de maturação, de um tempo correto para que nos possa vir ao prazer de um vinho?

Ler.

A leitura abre universos, e isso não é uma frase solta, um adágio pedagógico, uma busca incansável de novos leitores. O processo qualificado da leitura é imprescindível para que possamos ter uma melhor compreensão do mundo, para que possamos elaborar com uma certa eficácia os nossos argumentos, para que possamos descobrir novas possibilidades de convivência com o complexo, com o que não está claro para a nossa compreensão.

Temos de ler, e temos de ler bem. Ler autores que nos tragam algo de novo, que nos complementem, que nos remetam a novas reflexões. Não necessariamente ler artigos acadêmicos, ou pelo menos não apenas eles. Ler romances, ler sobre política, sociologia, ciências, deixar fluir  leitura e entendimento como se estivéssemos abrindo portais, Os livros talvez sejam isso: portais. Bibliotecas os guardam, mas seus dizeres, suas mensagens, suas histórias as guardamos nós.

Repletos de humanidade, os livros parecem dizer: vem, vem me conhecer! HILTON BESNOS

O que me construiu

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HILTON BESNOS – Sábado passado estava assistindo o Serginho Groisman (Altas Horas, TV Globo), quando pensei: que bom que foi o meu caminho até aqui, em termos de leituras, filmes e sentidos que captei de tão variadas formas… Hoje, aos cinqüenta e dois anos, posso dizer, com uma razoável certeza que as pessoas que me conhecem me tem em alta conta, não pelo que eu possua ou deixe de possuir, não em razão do que eu tenha amealhado em termos materiais, mas, especialmente, em face do que eu sou. Com o tempo, creio que fui melhorando como pessoa, embora ainda haja muito muito a ser revisto e, certamente, a ser objeto de crescimento, simplesmente porque não paramos nunca de efetivarmos mudanças que às vezes são tão sutis que mesmo nós (ou principalmente nós) simplesmente não nos damos conta de tais necessidades.

Mas escrevo em razão das oportunidades que me foram dadas, e pelas tantas que criei, mesmo sendo considerado, na minha adolescência, um bicho meio careta e, sem dúvida, estranho. Não fui exatamente um sucesso em termos de conquistas e nem era um desses meninos com os quais as meninas sonhavam namorar.

Então, minha atenção foi se voltando para expandir o meu mundo. Aí começa a melhor parte do que me construiu e me constitui até o momento. É claro que tive afetividades e amores de minha família, e que problemas como teto, lar e materialidades nunca me faltaram: eu era um filho de pequenos comerciantes, algo oscilando entre a baixa classe média e seus sonhos de ascendência e uma realidade que nem sempre era a que se buscava. Havia limitantes e limitações. Mas, como disse, de certo modo eu ia expandindo meu mundo. No entanto, se não tínhamos dinheiro para tanto, o que fazia com que houvesse essa melhoria, essa descontinuidade de prazeres e de obstáculos?

Vivi uma época muito interessante. Lembro que lia o Pasquim, Planeta, Júlio Verne, Érico Veríssimo (As aventuras de Tibicuera e mais tarde, todos os livros do Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo). Antes de ir para a escola, à tarde, ficava ouvindo, com meu padrinho, novelas no rádio, e tudo isso era um exercício para minha imaginação. Com meu pai ia aos jogos do Inter, escutava muita música, cantávamos e navegávamos pela poesia.

Quando adolescente, havia bossa-nova, jazz, jovem guarda, e os rádios tocavam músicas italianas, alemãs, americanas, enfim, viajávamos por outros locais, por outras línguas, e isso também foi ajudando a que tivesse uma pronúncia razoável em outros idiomas, por outras experiências diferentes de um inglês e de uma tendência a apenas um meio de vida diferente do nosso.

Assistia Rin-tin-tin, Bonanza, Jeannie é um Gênio, Papai sabe tudo, e escutar noticiário pelo rádio era algo comum. É claro que existem muitas coisas e muitas possibilidades hoje em dia, mas, o que me construiu tinha a marca do não-óbvio, do não-direto.A maioria dos programas em TV que eu assistia não eram apelativos, até porque sexo, basicamente, se revestia de um certo mistério interessante. Sexo era algo que tinha algo a ver com pecado, com gavetas escondidas, com algo tabu, proibido. Se era bom? Não sei, mas não me lembro, criança pequena, de ver cenas picantes na TV; ao invés disso, os programas mais se preocupavam com ideologias e sentidos de vida.

Mas muito do que assisti, tenho certeza que as gerações mais novas não experimentarão, desde fatos absolutamente triviais a outros, de cunho mais sério e histórico.  Havia novelas no rádio.  Bobagem? Nem tanto. Não tendo a imagem, tinha a imaginação, tinham os sons que indicavam e eram marcadores das ações. Imaginava o rosto dos personagens, os cenários, o desenrolar da trama, e isso, queiram ou não, junto com a supressão da imagem era um excelente ativador criativo. Assim, não recebia passivamente imagens, mas estruturava uma rede, um encadeamento de ações que eram produto das minhas reflexões. Assisti os famosos festivais de televisão.

Então vamos lá: amostra grátis!

Beatles, Roberto Carlos, MPB, Jovem Guarda, Maria Bethânia, Batman, Pasquim (todas as edições, infelizmente perdidas no mundo), Realidade, Mundo da Criança, todas as obras de Monteiro Lobato, O Conde de Monte Cristo, O Tempo e o Vento, Mário Quintana, Bossa Nova, Guerra de 67 de Israel x Vizinhos (ou o contrário), exame de admissão (rodei para entrar no Julinho), perdas, danos, lutos (todos, de diversas ordens), namoros escondidos, mentiras, ajustes, jogos de corpo, Beira-Rio x Olímpico, último jogo no Campo dos Eucaliptos, sinagoga, bar mitzwa, goyim, ídiche, Revista Planète – que seguiu o mesmo rumo da coleção do Pasquim…-, jogo de bola, eu de zagueiro mas fazendo meus golzinhos improvisados, amigos queridos e guris chatos pra caramba, frio no inverno, uma delícia o outono, tempos e estações seguindo seus ritmos naturais, música, música, leitura, primeira copa do mundo em cores, meus pais, meus padrinhos, o mundo pela frente, o que fazer?

Há, enfim, centenas de referências que foram construindo o que hoje sou. Mas, sem dúvida, embora não houvesse uma tecnologia tão absolutamente presente em nossas vidas, havia tempo e oportunidade para sentarmos à calçada após um dia de trabalho e, para as crianças, tempo para brincar, jogar bola, jogar bolita e imaginarmos o que iríamos fazer no dia seguinte, fosse na escola ou fora dela. Não se trata de saudosismo, simplesmente, mas de notar o quanto as coisas hoje são diferentes. Existe toda uma pedagogia para o consumo, toda uma mídia para a venda e para a exploração comercial. Parece que algo se perdeu por aí, no meio do caminho: o que quer que seja, no entanto, é demais importante para ser relegado e, menos ainda, para ser esquecido.

PUBLICADO m 2006.

Matutando

Matutando

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HILTON BESNOS – Não raras vezes buscamos, procuramos, saímos à cata, conversamos, descontraidamente ou não, a respeito do que imaginamos ser o “sentido da vida” – assim mesmo, aspeado, para mais ressaltar tal expressão que tanto motivou e motiva a todos de modo geral e a filósofos e pensadores de modo mais próximo, deixando a cada qual que a interprete na conformidade de suas vivências e trazendo sempre novas possibilidades de indagação.

Há fatos que ocorrem no bojo do que denominamos senso comum, entendido como o pensamento do cidadão médio, e que integram o saber ou sabedoria populares que em boa parte fundam-se no empirismo. Muitos desses saberes explicitam-se pelos “ditados populares”, cuja abrangência limita-se tendo em vista as culturas e as historicidades dos seus autores.

Quando dizemos que as pessoas devem ter um meio legal ou legítimo que aponte de onde vem o seu suporte financeiro, estamos referindo-nos ao senso comum e que o direito consagrou. Contudo há situações que não estão dentro do previsível e que nos fazem refletir profundamente a respeito da existência de um cerne, anima, alma metafísica que imprime a vida uma qualidade que não nos é perceptível, menos ainda apreendida. Essa essência que transcende o comum, interage constantemente com o imprevisível, de um lado, e o esperado, de outro, com a infortunística e com o senso-comum, com o destino (se assim quisermos chamar) e com o sabido, o acaso e o rotineiro. Seria razoável se representássemos a vida por um símbolo ying-yang ou talvez entre Tanathos e Eros?

Possivelmente não, pois a mesma estaria em fluidez entre os limites simbólicos expressos; a vida é pulsão, é reconstruir, o tênue que dá-se entre o conhecido e o desconhecido, entre a razão e o sentimento, entre o efêmero e o que cria raízes, esse o universo em que nós todos nos movimentamos, e aí recriamos nossas existências, reescrevemos nossa história, mesmo que para alguns os capítulos sejam monótonos ou monocórdios ou mesmo tenham seus atores perdido a vontade de compor ou recompor o dinamismo vital: mesmo assim a pulsão estará lá.

Estamos insertos no dinamismo e pulsar vitais, dentro do que a cultura recebida e vivida em nossas circunstancialidades aponta; somos portanto seres em construção, mesmo que tenhamos optado por darmos um caráter absolutamente rotineiro ou burocrático à nossa própria existência. A profundidade das mudanças manifestar-se-á dentro de décadas ou de dias, seguindo ritmo próprio e natural.

Temos aqui que fazer um pequeno recorte, que abarca o glamour fantasioso e irresistível da expressão destino que, para muitos, é um dado metafísico que tem uma função determinante não só na estrutura dos fatos, mas rege modificações interessantes na própria vida das pessoas. Destino é algo que você acredita que exista ou não, pelo menos no que concerne àquele ter força suficiente para modificar os fatos futuros. Se você crê firmemente em tais assertivas, o sentido da vida será o curso do destino, capricho da sorte. Cessam aí as dúvidas, porque a certeza reside justamente na incerteza do que virá. Deuses regerão os caminhos da vida, dos quais seremos navegantes, já com todos os portos e cais pré-determinados.

Quando os fatos da vida nos surpreendem, especialmente de modo desfavorável, na maior parte das vezes não conseguimos entendê-los, apenas sentimos o impacto e as alterações que virão a partir daí; nem sempre a resignação acompanha nossos sentimentos. Angustiados, não nos acorre nada que seja razoável: muitas vezes a injustiça, a perda permanente ou não de quem amamos, uma doença, enfim, apenas transmite-nos dor, desamparo, impotência, desolação. Muitas vezes parece que estamos absolutamente jogados ao caos, e que a vida perde seu sentido.

Aí quando a surpresa nos abate muitas vezes nos interrogamos: há sentido em tudo isso? Há sentido na miséria, na violência, nos crimes, nos ataques sangrentos, nos homicídios, nas doenças insidiosas, na injustiça? Há sentido na sexualização exacerbada das crianças, há sentido na pedofilia, na fome, na usura, no ganho desmesurado, no racismo, nos extremistas e nos fanáticos, entre outros? Então forçosamente temos de admitir que, a exceção dos flagelos naturais e das doenças, a construção de uma sociedade reflete sua historicidade, sua cultura mas, sem dúvida, também mostra, claramente, seu grau de educação e seu leque de livre-arbítrio.

Quando não há solidariedade, há exacerbação da miséria, há um leque de necessidades intocadas. Quando não há trabalho, quando não há lazer, quando a violência campeia, por certo há menos cultura, menos comida, menos habitação, e especialmente, menos educadores e educandos. A falta de ética é uma opção social, como as demais. E os intérpretes e atores de todos esses atos que compõe a sociedade humana somos nós mesmos.

Não há porque buscar no outro o que negamos a nós mesmos: o auto-conhecimento, a disciplina, o amor, a meiguice, a delicadeza. E só podemos descobrir sentido na vida, mesmo em suas catástrofes pessoais quando desenvolvemos um profundo senso de ética, de amorosidade, quando passamos da posição de juízes à posição honesta de observadores e atores. Interagimos com a vida, sendo parte dela, e por isso a recriamos em nossa carne e nosso espírito.

A religiosidade não é algo que garanta que seremos solidários, amorosos e especialmente que nos importaremos com o outro. Contrariamente, podemos usar um simulacro para justificar nossas próprias indiferenças. A própria organicidade ou fundamento das religiões pode dar-nos um estuário para que, frequentando templos, mesquitas, igrejas, sinagogas, e outros locais dedicados ao espírito, possamos continuar ensimesmados em nossos invólucros de egoísmo, senão vejamos.

Dizem as religiões haver um ser superior que controla e vê tudo, que nos observa mesmo antes de nascermos. E nos perdoa sempre desde que nos arrependamos de nossos pecados com sinceridade, tendo por todos seus filhos a mesma consideração e amor.

Ora, a ideia de um grande pai que nos orienta e nos dará seu perdão eterno e irrevogável poderá ser entendida por muitos como um ato de liberalidade; se assim for, mesmo que não sigamos os caminhos religiosos institucionalmente traçados para atingir a glorificação, ao cabo e ao fim estaremos perdoados, o que reforça o glamour do destino, ou, em outras palavras, a indecisão do que virá ou advirá de nossos comportamentos poderá ter uma solução romântica, ou uma sustentação no improvável, na essência do non-sense. Uma gotinha de caos libertador no cotidiano, a teoria do destino…inclusive para refutar o que entendemos seja livre-arbítrio…

Para quem, contudo, não crê em tal possibilidade, abrem-se outros caminhos que poderiam ser trilhados para entender o que seria, afinal, tal “sentido”. No meu entender, há muito de circunstancialidade, muito de avizinhamento e uma dose larga de livre-arbítrio. Creio sermos os protagonistas de nossas expectativas, o que significa dizer claramente que construímos e reconstruímos diuturnamente um sentido para a vida, e somos (re)construídos por esse mesmo sentido, a partir da imersão em nossas próprias circunstâncias e nas do outro e em que nos avizinhamos da realidade externa e de nossos próprios desejos e capacidades.

Não somos, pois, perfeitos e acabados, mas menos uma pluma que o vento joga a seu bel-prazer e de acordo com as suas correntes. Estamos em construção, e é o ritmo dessa que nos vai tornando pessoas mais conscientes do que somos.

Quando falo em circunstancialidade, quero dizer que nunca viajamos sós, porque nossa cultura nos acompanha, nossos ritmos continuam nos pressionando a agir desta ou daquela forma. Somos nossas circunstâncias, estamos imersos nela, e nossa própria moralidade e senso de ética estão aportados em tais aspectos. Muitas vezes não vemos sentido em decidir desta ou daquela forma, e quanto mais complexos os assuntos, mais forçam uma aparência simples, quase sem maiores conseqüências.

Tomemos cuidado, ao permitirmos que as circunstâncias tenham a capacidade de iludir-nos, fazendo-nos ver apenas o que não passa de momentâneo, mas que toma foros de verdade absoluta, porque nossa possibilidade de enxergar está razoavelmente comprometida… as vezes é necessário que não decidamos, mas que permitamos que o tempo opere seus efeitos.

Avizinhamento tem justo o sentido da palavra: vizinhança, avizinhar, limítrofe, estado de limite. Estamos nos aproximando de um determinado ponto, de um determinado referencial. Podemos ou não rejeitá-lo, e agiremos na conformidade do que nos for possível escolher. Outrossim, num mundo absolutamente padronizado, talvez não vejamos em princípio,sentido em duas situações: na primeira, como não sentirmo-nos presos dentro dessa visão de estranheza e na segunda, porque contestar o que já está posto, o que já introjetamos como mais ou menos inalienável, correto, não-precário, enfim, todas essas noções que conhecemos de longo tempo.

Temos medo dos nossos vizinhos, do que eles possam pensar, das suas fronteiras, do pensamento deles, mesmo temos medo de seus ócios, então preferimos, não raras vezes, ignora-los, deixamos de vizinhar, tornamo-nos estéreis em meio a pedras. Esquecemos que o isolacionismo de há muito mostrou e mostra suas desvantagens. Deixamos de apoiar e dar apoio. Deixamos, simplesmente deixamos que aconteçam arbitrariedades, nos tornamos veículos indiretos das mesmas, porque fomos acostumados a pensar de modo pragmático unicamente em nossos umbigos…Não somos solidários ou se o somos, pretendemos fazê-lo quanto mais distanciado do outro, melhor…

Existem movimentos no mundo inteiro, especialmente de ongues para que possamos dar maior apoio a quem necessita, o que já é muito bom, despertando o sentimento de que, antes de sermos vizinhos, talvez sejamos simplesmente pessoas em busca de outras, querendo todos carinho e solidariedade, em contraponto a uma vida gris; contudo, essa nossa tendência ao individual, ao narcisismo pode, sim, trazer conseqüências a todos nós, tendo condições plenas de alterar, para melhor ou pior o “sentido” de nossas vidas.

Livre-arbítrio…rios de tinta já foram escritos sobre o livre-arbítrio. Digo simplesmente que entendo-o como nossa capacidade de dispor. Especialmente de nós mesmos. Analisar o livre-arbítrio é tarefa vastíssima que merece e demanda mais que meia dúzia de idéias, talvez algumas mal acolchoadas…sendo ele no entanto não é razoável que esqueçamos que o livre-arbítrio é mais do que um item que se disponha quando nos referimos a esse assunto: é, sim, uma mola propulsora…

Enfim, talvez o sentido da vida seja bem mais que uma metáfora, da qual desempenhamos não só o papel do crítico, mas especialmente, do autor e ator que irá dar cor, sentimento, e os marcos referenciais que reconstruirão incessantemente seu próprio caminho. Entender que a vida tenha um sentido é entendermos nossa possibilidade de intervir, interagindo de modo ético e humano com nossa própria existência e com a do nosso irmão.

ps: escrito há seis anos atrás em 2012.

Alienação

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Nasci em 1954, logo tenho 64. Isso é tão incontestável quanto o fato de que minha história pessoal se confunde com o que aconteceu no mundo desde então. Não importa, sequer, se  me interessei ou não pelos mesmos mas, sem dúvidas, a minha vida, a dos demais e a do planeta foram influenciadas pelos mesmos, mesmo que indiretamente.

Contudo, a distância e a impossibilidade factual de tomar algum tipo de decisão sobre o que ocorreu e que me afetou e aos demais é algo que fica turvo, enevoado; mesmo a leitura, nem sempre coesa e melhor dos fatos, igualmente merece reparos. Para o comum dos mortais, homem envolvido em suas negociações do dia a dia cabe tão-só uma apreciação superficial das pautas midiáticas e essa é a base para suas opiniões e  fazeres alimentados pelo establishment e pelo senso comum, baseados em protótipos e imagens paradigmáticas.

Essa visão au passant, contudo, não é gratuita; contrariamente ela é construída socialmente para nossa alienação e para que possamos ainda, em pleno século XXI, a continuarmos a  discutir irrelevâncias e alimentarmos nossa hipocrisia, nosso ódio e nossas piores manifestações quanto ao outro e ao mundo em geral. Portanto, somos assim praticamente forçados a sermos competitivos e não-colaborativos, a sermos individualistas e não-solidários, a sermos racistas e sexistas e não-pluralistas.

No entanto, mesmo assim, essa leitura acrítica dos fatos já foi denunciada inúmeras vezes, como o fez, por exemplo Paulo Freire, et caterva. A recepção crítica à mídia, bem como uma maior compreensão dessas induções, fazendo com que não as naturalizemos é uma tarefa a que se dedicam escritores, professores, linguistas, e mais uma diversidade de estudiosos que se dedicam à tarefa de nos introduzir ao mundo simbólico.

Mais uma vez o estudo e a educação fazem uma diferença enorme na cultura. Há um livro excelente, Diálogos Criativos, a respeito de uma palestra realizada em São Paulo que contou com Frei Beto e Domenico di Masi. Em um dado momento, Di Masi afirma que se um ignorante e um culto assistem a um mesmo filme, em realidade assistem a filmes distintos. E tem toda razão. A educação e a cultura fazem com que a apreensão e interpretação do mundo simbólico sejam particularmente alavancadas, assim como o conhecimento histórico.

Em suma, a educação modifica as pessoas, normalmente para melhor, e as qualifica para poderem sair da posição passiva que ocupam para uma posição social ativa. No entanto, mesmo a educação não pode responder por tudo, e nem é essa a sua função. Como acontece com praticamente tudo, há um display que mostra se queremos acessar educação e para que fim o fazemos. Esse está conosco e deriva das nossas experiências e de nossas expectativas em relação à totalidade na qual estamos imersos. Podemos melhorar ou não, e isso depende, na maioria das vezes, aí sim, de uma decisão pessoal. Ou podemos, igualmente, fazer parte da massa à qual se refere Raul Seixas, em Ouro de Tolo. HILTON BESNOS

Os jogos de Maya

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Os jogos de Maya, de Delia Steinberg Guzmán, Ed. Nova Acrópole, Belo Horizonte, 2013.

RESENHADO POR HILTON BESNOS

Maya é uma deidade oriental, criadora das ilusões e de miragens às quais nos habituamos e que fazem com que nos apeguemos às coisas materiais, à sedução sensorial e aos arraigados conceitos de posse e propriedade como instrumentos de poder. Maya reina no espaço e no tempo que denominamos vida, na qual desperdiçamos nossas potencialidades essenciais de entendimento em razão da infinidade de distrações às quais somos pela mesma submetidos.

O livro trata da formatação que Maya adota para que nos afastemos das ideias primordiais da Unidade e de valores perenes como a Justiça, o Bem e a Divindade. Seus jogos enfraquecem nossas possibilidades de autoconhecimento, nos tornando mais sensíveis a tais jogos de aparências. Uma das peculiaridades de tais ilusões é que as mesmas se baseiam em valores não perenes, que se diluem como uma fímbria de luz no horizonte, como amores passageiros, como sentimentos vãos, como desejos que se esgotam em suas próprias saciedades.

No entanto, mesmo nos jogos de Maya que nos embaralham, nos fazem perder o rumo e, especialmente, nos levam para caminhos de paixões exacerbadas e indecisões além da  mera fruição dos nossos desejos, há uma função maior e pedagógica: a de preparar nosso espírito para caminhar de modo mais coerente para a Unidade. No entanto, é decisivo sabermos primeiro porque, como e quando estamos jogando.

A autora faz uma analogia entre nós mesmos e os jogos das crianças que, ao brincarem, se preparam para as situações que irão enfrentar na vida adulta e nós mesmos que, em nosso estágio de crescimento e de conhecimento aqui nos encontramos, no reino de Maya e sob o império de seus disfarces, para que aprendamos a viver outras e novas experiências que nos levem a outros níveis de evolução.

Para a autora, “Há em Maya mais piedade que maldade, mais desejo de ajudar que de ferir. E também está no homem a capacidade de perceber e agradecer esse esforço da Natureza por fazer mais amável nossa vida sobre a terra.”

“Os jogos de Maya” nos falam de uma relação simbiótica entre a Natureza e o homem, a  partir dos elementos naturais (as pedras, as plantas, os animais, o fogo, a água, as quatro estações, o dia e a noite, a terra, a água, o ar, o movimento) do homem em seu mundo interior (sentimentos, pensamento, intuição, vontade) e sua vida social (sociedade, os agrupamentos humanos, a família, a educação, a ciência, a religião, a arte, a política, a guerra, o amor, o destino).

Ocorre que normalmente tais relações não são objeto de uma apreciação humana integradora, por um lado e, por outro, o nível de separatividade imposto por paradigmas dissociativos pesa enormemente em tais níveis de entendimento.  Traz boa parte da humanidade ainda a ideia de que o domínio exercido sobre a Natureza é um caminho a ser seguido, enquanto pensadores, tanto em educação, quanto em ecologia e em diversas áreas e campos de estudos apontam para caminhos mais integrados e que dizem da interdependência de todos os seres vivos. Essa dicotomia é mais uma das ilusões dos jogos de Maya que utiliza de pensamentos e ações humanas que, ao premiar a separatividade, impedem um olhar que se ponha em um patamar superior, bem mais alto do que já nos acostumamos.

Portanto, os jogos de Maya tem uma enorme importância em nossa evolução enquanto seres humanos. Como, aliás, cita a autora às páginas 167,

“Ela é justa consigo mesma, já que nunca atribuiu-se mais poderes do que aqueles que lhe correspondem, conforme sua natureza interna. É justa com os outros, já que não joga caprichosamente com os homens, nem segue rumos indefinidos em sua atuação.”

Escrito em uma linguagem acessível, que muitas vezes beira à poética, “Os jogos de Maya” nos remetem diretamente ao mito do Fio de Ariadne que, apaixonada por Teseu, empresta-lhe um fio, para que aquele, após derrotar o Minotauro, não fique aprisionado dentro do labirinto. Cabe-nos localizar dentro de nós mesmos o liame que nos levará adiante e para cima, no rumo da Unidade e do Imperecível. Saibamos que nessa vida Maya continuará seu jogo, mas, acima de tudo, não nos esqueçamos de aprender a jogar. Certamente, então, deixaremos de ser eternos meninos e meninas.   HILTON VANDERLEI BESNOS.

O auto-declarado

O autodeclarado semi-profeta, semi-ungido e/ou semi qualquer outra coisa, desde que se confundisse ou se pudesse confundir com um caráter divino, gritava, exacerbado, em meio à congregação atenta, que venerava o que imaginava, ou construíra mentalmente, pouco importava, ser mais do que uma peroração sobre deus e o diabo, senão um combate no qual ambos os contendores se debatiam e cujo final era previamente sabido e consabido e era e seria eternamente deus o vencedor e eles, os congressistas que a tudo compartilhavam, oravam e compungidamente expiavam a si mesmos e às suas diatribes, os que em tudo se espantavam, se assaltavam, se atormentavam.

Enquanto tanto ocorria, aproveitava o autodeclarado para dizer dos casos e dos milagres e das exortações e dos pecados que lia diretamente da Bíblia, do Novo Testamento, e para tanto ia ali consultando trechos, versículos, capítulos, passagens, que testemunhavam a vinda e a vida do filho de deus para aqueles cristãos, e lá se ia perorando e agora transmitia a própria palavra do mistério, enfim, o que dissera deus, o que revelara seu filho, e o fazia com uma fluência e uma paixão tão absurdamente descabida que qualquer druida saberia que toda aquela gritaria, que todos aqueles verbos, adjetivos, ameaças, choros, e em especial os gestos, ah os gestos!, eram apenas o reflexo de um ensaio, de uma peça histriônica.

Tivessem tido lugar naquele circus romanus, naquela pantomima, naquele jogo de máscaras, pensariam os mesmos tratar-se de uma grande comédia, que serviria tão-só para entreter tolos, mas em seguida lhes viria a tristeza e a plena lástima daqueles que não só lotavam o congresso, como por igual aguardavam o momento em que o diabo, o satã, o demônio, o esquerdo, o chifrudo, o inominável seria derrotado in verbis para explodir todos em um espasmo convulsivo, em aplausos, em “ohs!” arredondados, gratificados e gratificantes e em imaturas manifestações como o faziam as crianças quando recebiam os agrados de um presente há muito esperado.

Então os druidas partiriam, envoltos em um mar de triste perplexidade, e mais não teriam a fazer, pois que senão o grotesco lhes perseguiria como larva incandescente. Finalmente, e dali a pouco, não mais que o tempo de uma hora, disse o ungido pro tempore da vitória de deus sobre o diabo, e embora isso fosse tão absolutamente óbvio e recorrente, o que se seguiu foi o roteiro que teriam escrito, espantados e contrafeitos, aqueles sábios.

Não se sabe até o momento o porque de tanta atroação, a não ser tivessem aqueles fiéis de ouvir a cada dia o mesmo tema em variações flexíveis e sedutoras, pois que, se criam no filho de deus como o diziam e trombeteavam seria em absoluto natural que entendessem que seria dele a palavra final contra seus indigitados ofensores, e isso devia ser tão claro que dispensaria a faina comum e diária.

Contudo, há uma separação entre o que se crê real e o que se institucionaliza e se fiéis por vezes descreem no que dizem crer, outros tenderão a vê-los como servos in extremis de uma crença, se os virem cumprindo as falas, os rituais e as expiações impostas aos homens por outros homens, como o preclaro orador e demais institucionalizantes.

Não basta ser, mas devemos ter a aparência do que dizemos ser. Aliás, se a aparência for convincente, nem  precisamos ser, desde que os demais sejam iludidos pelo que dizemos ser. Em termos mais filosóficos, só existe moral quando, em não havendo quem nos aponte, critique ou elogie, tomamos a atitude correta mesmo sós, pois acreditamos nela.

Por lógico, somente aos autodeclarados, no uso de suas melhores habilidades e capacidades transcendentes, cabe o poder temporal de orientar, pregar, colocar contrapesos, regras, freios, moralidade, ética àqueles desavisados fiéis, além de dizer mais, para qual caminho deverão os mesmos se orientar e seguir, sob quais pontes passar, sob quais portos atracar seus barcos, o que poderão ou não fazer ou omitir, quais serão  eventos norteadores de suas vidas e todo o mais o farão pois somente eles, os oradores, poderão ler o que ninguém lê e glosar, interpretar de modo iluminado e especialmente único e irretorquível o que outros não entenderão de modo que aos primeiros acode, per tutti i per sempre, a exclusividade autorizadora para organizar e dar rumos no mais das vezes conservadores aos que creem no mistério da palavra divina.

E, diga-se de passagem, não são poucos os que a ela se submetem, através da sempre zelosa intervenção dos ungidos.

Ainda de considerar-se que somente àqueles cumpre dizer o mistério da palavra, e, insistem eles nesse ponto, de tal modo que, informam e reclamam à si tal privilégio, não há outra crença, outra religião, outra manifestação transcendente que não objetive, segundo os mesmos nada além de conspurcar, macular, tornar risível e ridicularizar o que dizem ainda ser a palavra do filho de deus, e em tal floresta se embarafustaram, que o que não lhes é favorável, está em posição antagônica, perigosa, subversiva, odiosa.

Somente aos mesmos cabe dizer o que o filho de deus disse, e se mais alguém ousar em discordar, mesmo em contrapor eventualmente, haverá uma guerra cristã a ser travada, como o fizeram os cruzados. Morte aos mouros, é o que resta àqueles que indisciplinadamente não concebem a palavra do filho de deus como a única e inarredável.

Eu

Sou mais do que os outros, os que se arrogam fiéis, mas mentem e o fazem de modo tão constrangedor, tão falível e mísero que me causam ojeriza, nojo, tristeza, pois os seus atos não correspondem nem de longe e nem de mínimo, por mais piedosos que possamos ser, àquelas atitudes que fingem, mostrando-se altruístas, sinceros, quando erguem suas mãos aos céus e clamam, com as suas bocas eivadas de vícios, as migalhas do Senhor, sim, porque Ele, do qual não digo do nome, porque contrito me faço só de nele pensar, não pode alcançar aos mesmos nada mais do que traços mínimos de Sua atenção, e mesmo assim O fará porque é condescendente e não por merecimento daqueles.

Diferentes em tudo e por tudo do que penso e faço, eles, os ímpios se fantasiam e peroram e fingem se humilhar e oram tão sinceramente quanto as suas falsidades e os seus cinismos permitem operar, fazendo-o unicamente para pedir, requerer, solicitar, implorar, buscando mercanciar com Ele como se fosse um contrato negocial, um toma-lá-dá-cá, assemelhando-O a um vendedor de ilusões, a um ilusionista que pusesse fim às chagas desses cães e lhes fornecesse o que necessitam, e Lhes expiassem os pecados como se fossem tais infiéis o sal da Terra. O mais extraordinário de tudo isso, e aí reside a Sua Glória, é que mantenha em vida tais excrementos pretensamente humanos e não os faça arquejar em meio às suas hipocrisias, não os deixem sufocar ante suas odiosas falas e exclamações confusas.

Vem um e implora seja curado de seus males físicos e psíquicos, de suas gangrenas, de suas veias dilatadas, que, em tudo e por tudo são apenas consequências de uma vida improdutiva, prevaricadora e que se deixou alimentar por todos os vícios possíveis até chegar até o ponto em que está, pulando como um novilho que tão-só espera o momento de ser degolado.

Ainda se junta àquele, ajoelhado, uma mulher, que, assim também se ajoelhando perora para alhear-se de seus vícios e perturbações, de uma vida má e infeliz, porque seu marido a deixou, porque o filho a abandonou e ela agora está ali, pedinte de carinho, de uma casa, de uma cama quente e de uma comida boa, de concreto  e por aí se sucedem sempre pedindo, pedindo, pedindo e sabemos todos os da congregação que, uma vez alcançado seus objetivos, poucos ali restarão para louvar o Seu Nome.

Ainda convergem para cá, para o Templo da Congregação Maior, aos bandos, aos magotes os que se sentem injustiçados, oprimidos, aviltados, falidos, degredados, famintos, extenuados, infelizes, os de má-sorte e destino cruel, os vítimas de desígnios e de amizades ruinosas, os desesperados, os desgraçados, os tristes e amargurados, os que tem nevralgias, os que tem doenças no corpo e na alma, sem que lhes acuda minimamente que também cometeram injustiças, que igualmente oprimiram, que aviltaram, que levaram à falência, que cometeram ou que deixaram cometer degradações, que negaram comida, água e pão, que trouxeram o cansaço e o desânimo a outros, que colaboraram para que tivessem esses outros infelizes a má-sorte, a desgraça e a ruína que agora esquecem, porque é em sua carne que a navalha da indiferença humana corta.

Vem todos eles para se juntar aos demais párias morais e sociais, que igualmente tem as vestes descompostas e as rugas que são testemunhas de uma vida em tudo afastada de Deus, mas que se entendem no direito de rogar e de suplicar por si mesmos e pelos demais, alguns mesmos em histeria e todos em uníssono querendo satisfazer os seus desejos e súplicas, purgando as suas existências doridas e insignificantes, e é somente esse o motivo pelo qual aqui acorrem e não outro, o do louvor ao Senhor, embora, deva aqui dizer, há alguns, normalmente mais jovens e inexperientes que realmente comparecem porque talvez lhes haja sucedido uma experiência transcendente, e é por eles que estou aqui e sou quem eu sou, para pinçá-los, um a um dessa massa ignorante e malévola, que aqui deposita suas moedas não para fundar a Grande Obra, mas para expiar suas próprias vicissitudes.

Pois que mais depositem, pois que mais joguem aqui seus metais, suas jóias, seus terrenos, suas casas, o leite das crianças que obtiveram sabe-se como, as suas rendas materiais pois sabem os mesmos que tantos recursos tão-só servem para aplacar-lhes minimamente seus espíritos atormentados e purgar seus imensos pecados até onde a desfaçatez e a hipocrisia não conseguiram corroer de todo.

Deles, não tenho piedade, pois que uma profunda indiferença me invade quando os vejo assim como estão, submissos, entregues como um bando de ovelhas que balem tão alto que meus ouvidos chegam, por vezes, a doer. Suas lágrimas são insinceras, tanto quanto seus gritos de desespero, suas conveniências moral e eticamente indefensáveis.

O meu papel, aqui, antes, é de trazer segurança espiritual e mundana na certeza da fé aos que efetivamente denominamos de Subidos. Eu aqui estou para trazer-lhe a energia necessária para prosseguirem a Grande Obra, e para afastar, do modo mais rápido possível, as ameaças que lhes possam cercar ou cercear.

Eu os saúdo a eles, aos não hipócritas e vis,  aos que ainda irão chegar para alcançar o que, de bom grado plantaram. Vejo claramente aos aproveitadores, aos que creem por ocasião e conveniência, aos Perdidos.

Subidos, eu sou seu Protetor e Mestre.

Hilton Besnos, 2017

Nada para escrever

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HILTON BESNOS

Nada para escrever, reiterando o que outras linhas já discursaram….

Disseram e muito, especialmente do que ficou por aí, nas mensagens truncadas, nos pedaços de mensagens perdidas, especialmente nas intenções. Vontades, desejos que vão parar nas escritas, nos contos, nas fantasias, em um mundo todo que traça em si mesmo uma argumentação, uma rede que vai se expandindo através do tempo, das experiências, dos limites e dos limitantes que impomos a nós mesmos, ou que aceitamos imporem, aos manejos e remanejos nos quais vamos acomodando as nossas histórias, e daí reinventando estórias e revisitando, em primeiro lugar, a nós mesmos.

Escrever é um bálsamo, mas de vez em quando pode ser um gume afiado a nos espreitar quando, para os leitores, criamos personagens mas, intimamente sabemos que se trata de uma confissão, de uma crueldade que desejamos ou abominamos, mas que está ali, em nossas redondezas, em nossas vizinhanças mentais… criamos então a ficção, forma sutil de compartilharmos tudo com todos, de fazermos com que nos identifiquemos com uns e outros personagens, e gozemos, especialmente, do simulacro de sermos deuses enquanto confessamos a nós mesmos nossos pecados e expiamos nossas culpas.

Alimentamos assim, aqui e ali, nossas embarcações de novos portos, nossas camas de outras(os) personagens, nossas angústias de novas vibrações, como se fossemos imensos tambores que, além de repercutirem em nós mesmos, fazem também com que o mundo reconheça, em cada uma de suas batidas, o muito de humanidade e de inegável tristeza a que estamos condenados. Afinal, como navegar é preciso e viver não é, se a poesia que tornou em beleza o pensamento de Fernando Pessoa é ainda e será a que nos embala e embalará, nos fazendo sonhar?

Como descolarmos de nós (nosotros seria melhor, mais sonoro, aqui) nossa descendência lusitana, com seu muito de dramaticidade que conduz nossas próprias naus? Como escrevermos, a não ser em português? Salvai-nos, Saramago!

 

Anizade é amor sem sexo

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R. I. P.  Schanini José Kirchbaum

R. I. P. Antonio Augusto Mariante Furtado

 

Amizade é amor sem sexo. Hilton Besnos

 

Tem amizades que, durante algum tempo (ou muito) ficam em stand by. Isso: ficam ali por perto, esperando serem ativadas; se não forem, vão ficar insensíveis, esperando que o sentimento que as mantém ligadas colapse de vez. Essas são amizades que estão contingenciadas a determinadas passagens e cenários de nossas vidas; são aquelas da época da escola, da época em que trabalhamos aqui ou ali, dos momentos mais ou menos marcantes em que tais ou quais pessoas estavam mais ou menos próximas. Significa que a proximidade continua? Não, mas sim que ela pode ser resgatada em razão da significância dos momentos em que privamos dessa amizade ou, simplesmente, pela nossa memória, que passa a buscar pessoas importantes em determinados eventos em nossa vida. No entanto, se a amizade está em stand by, nem sempre isso é possível, pois os cenários mudam e talvez obtenhamos, tão-só, uma cordialidade um pouco mais atenciosa, mais saborosa, mas não mais a intimidade plena que é requisito para a amizade verdadeira.

A amizade requer, especialmente, renúncia, interesse na outra pessoa pelo que ela é, compreensão, e mesmo oposições. Podemos ser duros com nossos amigos: eles entenderão, mesmo que sejam dispensáveis as palavras. Há uma sinergia presente, há um doar constante, há uma cumplicidade que o tempo cada vez mais ajuda a construir.

Costumo dizer que amizade é amor sem sexo. O contrário não é verdadeiro, porque o amor não dispensa a amizade. Sou mais amigo de quem mais amo. Como o amor mesmo pode dispensar o sexo (a paixão não!) podemos então, verdadeiramente, sermos amigos de pessoas do mesmo gênero ou não. Aliás, o que mais nos impede de cultivarmos amizades reais são conceitos ou pré-conceitos socioculturais e histórias de vida. Quando, contudo, nos ocupamos de nossa humanidade, absolutamente desimporta qualquer outra referência que não seja a humanidade do outro. Claro que podemos ter amigos que sejam mais ou menos humanos que nós, mas quem cultiva a intolerância ou quem restringe as suas experiências e relacionamentos à uma carta de obviedades, tem maiores dificuldades em se encontrar plenamente com grandes amizades.

É necessário, também, que nos permitamos ser flexíveis o suficiente para compartilharmos com os outros o que somos. Por vezes nossa autocrítica anda tão alta e nossa estima pessoal tão baixa que nos tornamos áridos, secos de sentimentos e mesmo estranhos a nós mesmos. Não raramente deixamos de viver prazeres porque nos embrutecemos a tal ponto que perdemos a capacidade de sentir e, portanto, de nos congraçarmos com o outro. Passamos a ser vítimas de uma indiferença a qual demos causa.

Grande amigo meu, D., tem conversado comigo de quanto percebe as amizades ou os relacionamentos esvaziados; casamentos, namoros, nada disso parece estar a salvo de um escapismo individualista, em que cada uma das partes busca, em primeiro lugar, seu interesse, para somente depois pensar ou referenciar o outro. Infelizmente tenho de concordar, pois é assim que percebo um mundo onde as intenções sempre passam pelo individual, pela satisfação de desejos muitas vezes inalcançáveis. Talvez por isso a amizade seja cada vez mais tão buscada, como um aporte aos sentidos e aos sentimentos, como um local especial, onde podemos confiar, onde podemos ser nós mesmos. A retirada da máscara social da conveniência talvez seja, aí a operação mais difícil e, por todos esses fatores, é indispensável que haja tempo para que a amizade amadureça, crie vínculos, raízes, possa estender-se além do manto da superficialidade óbvia a qual todos nós nos submetemos.

O tempo para descobrirmos o sabor do vinho, para crescermos, para chorarmos e nos angustiarmos; o tempo para sorrirmos e construirmos nossos pequenos-grandes sonhos, para caminharmos e reconhecermos, em nossas vidas, um projeto. O tempo para que tenhamos possibilidades reais de termos poucos, raros, talvez apenas um ou dois amigos.

Talvez, e com muitíssima sorte, um Schannini José K. e um Antonio Augusto Mariante Furtado. Hilton Besnos

Desterros cotidianos

HILTON BESNOS

O desterrado, em princípio, ocorre quando alguém foi expulso da sua terra, de sua comunidade, de sua gente. Alguém destinado a viver só, a ser um constante estrangeiro, perdendo suas referências, a ser um exilado. Contudo, nem sempre o desterro implica numa vendeta, numa violência simbólica ou pessoal, e menos ainda resulta de alguma implicação política. O desterrado é um apartado, um esquecido, um transferir-se continuamente.

Há desterros, contudo, que não implicam em exílio, mas, não raro, residem na indiferença, na invisibilidade social, no não-reconhecimento econômico, na degola financeira, na não-participação da cidadania plena, crítica e consciente. São os desterrados, assim, considerados um fardo social, cuja carga indesejada deve ser suportada comunitariamente. Párias em sua própria pátria, são produtos vistos como membros paralisados, na pior das hipóteses, embora sejam, eles mesmos, mais conseqüências do que causas às quais não deram, muitas vezes, nascedouro.

No mais das vezes, são os mesmos membros muitas vezes involuntários de sociedades patológicas, excludentes, que não lhes possibilitam, no plano real, acessos à educação, à saúde, à moradia, ao lazer, ao emprego por não terem qualificações exigidas para tanto e aguilhoados por discursos hipócritas que mais não fazem do que retoricamente entoar o canto açucarado da história dos vencedores que mais reforçam os meios de segregação social. O que mais acode ao não-cidadão é a indiferença, a ignorância política e a necessidade financeira.

Há, contudo, muitos modos de se perpetuarem modelos excludentes, que nos vão envolvendo a partir de ideias mal recebidas, sem crítica e que compõem uma massa de conceitos que contrariam valores como solidariedade e educação. A partir daí se disseminam os mais diversos modos de violência, sejam simbólicas, sejam físicas. O acreditar-se pessoalmente será o primeiro castelo que ruirá ante os olhos dos demais. Os processos de falência nada mais fazem do que concentrar doses cada vez mais maciças de ignorância, violência, necessidade e diversas patogenias sociais.

Se até o advento do pós-moderno éramos cativos da repetição constante de dogmas psicológicos como a repetição nauseante dos padrões de culpa e de neurose coletivas, o que se observa hoje em dia é que estamos abandonando um sujeito histórico, no qual nos incluíamos mas que hoje apartamos, para nos centrarmos em um sujeito psicótico, vagamente depressivo e com uma tendência cada vez maior ao fetichismo social e ao sadismo compulsivo, representado, o primeiro, pela tendência ao consumismo ególatra e o segundo à repulsa ao outro, confirmando a exacerbação do individualismo e dos objetivos que repousam no egoísmo e na insatisfação que nos alcança a todos e nos deixa com um travo de solidão.

Contudo, há aqueles que se refugiam no fetichismo desenfreado e para esses, por uma questão de lógica ainda menos lugar cabe ao sujeito looser, aos habitantes violentos das piores regiões da cidade e dos quais ele deve manter ao máximo o não-envolvimento de qualquer espécie, seja para sua própria proteção pessoal, seja para manter-se onde está. Nesses casos fica muito claro que o desenvolvimento ou não de tais desterrados não lhe interessa, porque os mesmos são transparentes àquele que desenvolveu uma repulsa compulsiva ao outro, a não ser que o mesmo possa lhe servir como um sádico instrumento de prazer.

Nossas patologias são várias, mas na sua essência sempre estará o compulsivo princípio egoico e uma tendência a tornar social e econômico os efeitos de tais situações desesperançosas.

Uma piada nos dá claramente essa dimensão do homem produtivo. Alguém reclama a um amigo que ninguém mais o nota, ao primeiro, que ninguém mais lhe dá atenção, que nada faz com que ele seja reconhecido ou procurado por quem quer que seja, o que lhe deixa extremamente infeliz. O amigo, então, diz: “Pois então deixe de pagar suas contas e você vai ver como vão se interessar por você”.

A acidez e a ironia latente no que deveria ser uma piada mais nos traz inquietações do que humor, sendo a mesma tão-só um retrato acabado do que pretendem que sejamos hoje em dia. Um credor ou um devedor. Um sujeito não-histórico que se prende ao materialismo e às necessidades prementes de fazermos ou não parte de um determinado grupo que supomos nos aceite. Ao mesmo tempo não aceitamos esse outro, senão enquanto nos for útil, prático ou prazeroso. Caminhamos assim entre paradoxos e não conseguimos confrontar a síntese que realizaria uma situação dialógica que não mais existe.

Nosso medo maior é perder qualquer coisa que seja. Se antes tínhamos, como bons neuróticos, a sensação de que há valores imateriais e bens afetivos que não iríamos colocar em risco, graças a uma história construída na qual os mesmos eram permanentes, hoje não temos mais essa segurança. No entanto não somos ainda desterrados, não somos párias e participamos com grande apetite do banquete dos bens da mercancia. Como disse um sábio, a obra mais bem acabada do capitalismo é fazer com que os pobres da terra se creiam e se posicionem na defesa do opressor. HILTON BESNOS

O caminho para ontem

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HILTON BESNOS

O passado nos conduz, porque a mais importante função mental que nos liga às múltiplas realidades que conhecemos, é a memória. Retirem-na e não saberemos quem somos, perdemos nossa identidade, nosso sentido e nossas referências. Deixamos de ser quando não nos lembramos mais do que somos, do que fomos. Sem memória, o que nos restará? Rostos desconhecidos, desde nossa família até as coisas mais rudimentares – o que é fogão? o que é uma faca e um garfo, para que servem? quem é esse que me beija sem que eu o conheça, quem é aquele que me cumprimenta quando não sei quem é, que faço aqui, se aqui não é o lugar que eu possa me reencontrar?

O drama da perda da memória é o drama do vazio, da desconexão, do desconhecimento, do que jamais será compartilhado, porque, perdido no mundo e nas minhas instâncias não reconheço mais sequer quem eu sou. O mundo, como existe, é um produto mental, é uma extensão do nosso corpo. Somos seres encarnados, e assim, com base em nossas projeções mentais, imaginamos o mundo como o pensamos, entendemos e vemos.

Criamos e recriamos convenções a partir dos nossos corpos, e lhes damos cor, simbolismos, realidades. Como imaginaria o mundo um físico quântico? Como o repensaria? Direita, esquerda, frente, fundos, determinar se um copo pela metade está metade cheio ou metade vazio, as educações, as sociedades, os sistemas que engendramos são projeções de nossos corpos. Os apêndices que criamos, as tecnologias, tudo isso está sendo reconstruído todos os dias a partir de nossas memórias e das nossas visões de como o mundo se comporta. Esse mundo, contudo, é igualmente um produto mental.

No entanto muitos sempre pensam em olhar para a frente, como se o passado e a memória pudesse ser descartada como um pedaço de pano usado que se joga ao lixo. Tolice. O passado, esse sim, é teu guia. É ele que informa quem você é, como se constituiu até aqui, o que pensa, quem são as pessoas que lhe são caras ou não. As passagens, os desvãos, os comportamentos, suas alterações e retificações, tudo se contém na memória.

Igualmente por isso nossas vidas são fundadas em buscas pela memória para que possamos entender o presente e, com sorte, projetar o futuro. Passamos, assim, por eternos ciclos para capturar o que já foi, para nos identificarmos com o que é e para pensarmos o que será. Talvez por isso, queiramos ou não, fazemos um eterno caminho para ontem.